Durante o Renascimento cultural surgiu uma forma de escrita que idealizava sociedades perfeitas. São os casos de Utopia (1516), de Thomas Morus, e Cidade do Sol (1602), de Thommaso Campanela. São descrições de modelos de vida tidos então como perfeitos. Não se tratavam de cartas de princípios programáticos, mas de narrativas de uma sociedade imaginária onde a vida coletiva alcançaria o ápice da virtude humana.

A palavra utopia, etimologicamente “não-lugar”, entra no dicionário político e filosófico de várias formas, mas, em geral, faz referência a um estilo de pensamento que projeta futuros virtuosos. No senso comum, utopia virou sinônimo de algo impossível, mas na política da esquerda idealista, a utopia é o alimento diário para a militância, esperançosa que um dia os homens poderão viver em harmonia e dentro de uma sociedade justa. Entre as principais utopias modernas está o comunismo, a sociedade pensada por Marx como o “reino da liberdade” em superação ao “reino da necessidade”. O comunismo, que deveria abolir as classes sociais e o Estado, seria o início da história, enquanto tudo que vem antes seria tão somente a pré-história.
Na prática de governo, a utopia ganha lugar na “política da Fé”, para usar o termo de Michael Oackeshott (1901–1990). Aqui, há uma crença na perfeição humana, e na possibilidade de desenvolvimento desta dentro do processo histórico. Entre revolucionários e conservadores, a utopia pertence aos primeiros, que optam pela transformação da sociedade rumo a um mundo melhor e perfeito, enquanto entre os segundos reina a opção pelo que “sobreviveu ao teste do tempo”. É melhor manter o que está do que se arriscar em aventuras sem garantias, pensa o conservadorismo.
Mas se entre os revolucionários mais radicais a utopia ganha um sentido idealista e até místico, do tipo que seria possível destruir o mal do mundo e erguer um paraíso na terra, espécie de messianismo laico (temos exemplos claros nas revoluções do século XX e nos movimentos de contracultura, como em 1968) também é possível adotar a utopia não como um fim, mas como um horizonte a ser buscado. Uma referência de trabalho para o aperfeiçoamento, mas com certa dose de ceticismo quanto à possibilidade da nossa espécie em alcançar ideais perfeitos definitivos. Aqui estão os reformistas.

O reformismo é uma estratégia política que pode atender conservadores e progressistas. Edmund Burke (1729–1797), fundador do conservadorismo moderno, em seu clássico Reflexões sobre a revolução na França, já falava na ideia de “reformar para conservar”. No campo progressista, o reformismo teve abrigo na socialdemocracia europeia, que propunha alterações na ordem vigente através de reformas pacíficas por dentro da institucionalidade. Há, por exemplo, o reformismo revolucionário de André Gorz e Carlos Nelson Coutinho. Este imaginava ser possível chegar ao socialismo pela via democrática e assistiu esforços históricos valiosos, como a Unidade Popular chilena de Salvador Allende e o eurocomunismo, que teve sua expressão maior no saudoso PCI (Partido Comunista Italiano).
A utopia que atende ao que chamo de “reformismo de esquerda” não é o sonho do mundo perfeito a ser consolidado em algum ponto da história. Trata-se de uma orientação política progressista de melhorias e transformações no Estado e na sociedade. Não se pensa, agora, em destruir o capitalismo e erguer uma sociedade igualitarista, mas de reparar injustiças, aperfeiçoar o funcionamento social e reduzir os danos causados pelos desequilíbrios que ora nascem do mercado desregulado. Um reformismo de antropologia cética quanto à possibilidade da vida perfeita pela ação humana, mas realista quanto a necessidade de seguirmos progredindo pela via civilizatória, sem projetos finalistas de sociedade.