John Ford, em O homem que matou o facínora (1962), afastou seus protagonistas dos gestos que marcaram a bravura indômita dos heróis do western.
Don Siegel secundou-o com O último pistoleiro (1976), reencenando, idosos, os mesmos atores que protagonizaram O homem que matou o facínora: John Wayne e James Stewart. Mais: Stewart, no filme de Siegel, como um médico, diagnosticaria no último pistoleiro do western, representado por Wayne, o que de fato o acometera naquele momento em vida, um câncer, que o matou.

Clint Eastwood, como ator, trabalhou em filmes de Don Siegel e deu continuidade ao trabalho de Siegel no western que dirigiu e protagonizou, ao lado de Morgan Freeman: Os imperdoáveis (1996). Willian Munny (Clint) e Logan (Freeman) são típicos anti-heróis em seus gestos: cometeram barbaridades na vida, mas as reconhecem e se arrependeram delas, no momento em que, juntos, já idosos, são contratados para cometerem as mesmas atrocidades do passado, deixando-os dramaticamente divididos e perdidos.
Clint Eastwood é diretor e ator de uma época de virada do western. Os imperdoáveis exemplifica tal virada por meio dos dois protagonistas que comentamos. Essa inflexão, no entanto, também pode ser considerada num tempo mais alargado que compreende a participação de Clint como ator e diretor de um western produzido nos moldes do italiano. Esse western ilustra alteração no gênero porque, ao adotar as tintas do exagero, do excesso, esvazia a mensagem do antigo western norte-americano, fazendo com que o espectador não acredite naquilo a que assiste, uma vez que, por exemplo, há muitos tiros de uma só vez para um mesmo revólver ou rifle, com muito barulho em cada tiro. As brigas entre rivais também atingem um volume de violência inimaginável; mesmo assim, Clint (com seu complexo de Django, o de quem não perdoa) estaria milagrosamente recuperado, loguinho, para novos conflitos traumáticos.
Dança com lobos (1990), com a direção e atuação de Kevin Costner, mostrara também, ao modo de uma fábula, um tenente, Dunbar, conversando com um lobo, numa maneira casual e fraterna de dialogar. O gesto da fábula está exatamente em avaliar a maneira do querer o que se quer no drama da vida, assunto que Dunbar, isolado num posto avançado do exército norte-americano, logo após a Guerra Civil, reconsidera para sua existência e para seu país, dada a necessidade dos USA reunirem-se de forma mais fraterna entre brancos, negros e indígenas.
Afinal, de acordo com a fábula no filme, se há entendimento entre homem e lobo, no caso, entre Dunbar e o lobo Duas Meias, por que não anular a animalidade, a barbárie, no convívio humano? Dunbar conseguiu conviver pacificamente com os indígenas Sioux (que, admirados, o observaram, e ao seu convívio com o lobo, por um bom tempo antes de se aproximarem do soldado), no entanto, não conseguiu evitar que fossem atacados, desnecessariamente, por uma divisão bárbara do exército norte-americano, que acabou por matar também Duas Meias, por simples prazer.
A mensagem da fábula do western de Costner ainda tem validade para a pauta de costumes dos USA. É o que se observa em Relatos do mundo (2021), de Peter Greengrass, na estufa da Netflix, que retoma o tema da mesma barbárie assentada em Dança com lobos: o fim da Guerra Civil e a incivilidade instalada entre o norte e o sul racista dos USA, agravada, na incursão do país para o Oeste, pela expansão das ferrovias, pelo mau trato aos indígenas (Kiowas, como bola da vez), pela colonização e pela caça aos búfalos.

Enquanto o capitão Jefferson Kyle Kidd viaja pelo sul do país lendo relatos de jornais para o público de pequenas cidades, dá notícias diversas, inéditas, para seus ouvintes, em momentos em que se observa, já muito assentado entre norte-americanos, o racismo estruturado dos brancos diante de negros e indígenas. Nem o riso do público ouvinte das notícias esconde seus preconceitos.
Jefferson Kidd é um homem experiente, até como leitor. Fora tipógrafo antes da Guerra Civil; participou da guerra, traz dela muita amargura que não se sobressai em suas leituras, inclusive, nem na escolha dos textos para seu noticiário: os inéditos, surpreendentes, agradáveis.
O nexo comum entre o leitor experiente, vivido, e seus ouvintes sempre esteve na notícia inédita, diferente das do dia a dia movimentado pelos ressentimentos alastrados pelo país. Situação, inclusive, que levou Jeffrey Kid a suas andanças pelo país com seu projeto de leituras.
Assim, a leitura do ex-combatente instala um lugar para avaliação de identidades, das visões de mundo próprias da cultura norte-americana, na voz de um leitor que procura superar seus próprios sofrimentos e ressentimentos, sem sobrecarregar os ânimos alheios.
Mais, e por último, a questão da paisagem filmada: estabelece o cenário para o drama que é matéria inegável de descrição da mentalidade norte-americana de uma época. Relatos do mundo (2021) traz uma paisagem ficcional em contexto regional: sul dos USA, que representa cenas do cotidiano entre homens e mulheres de estratos sociais e etnias diferentes, em atividades pouco variadas, reveladas em atitudes que marcam o seu caráter. A paisagem sustenta uma matriz cultural: atitudes, valores. A instabilidade, as diferenças entre norte-americanos são vistas a partir de uma atmosfera estável, na condução Peter Greengrass. Ele “fala” bem com uma câmera na mão; faz do espectador seu leitor, que reconhece, em seus relatos, motivos da miséria humana, tanto singulares quanto planetários: intolerância, racismo, maldades.
Luiz Gonzaga Marchezan é livre-docente em literatura na UNESP/Araraquara