RECEPÇÃO E RENOVAÇÃO DE UMA TRADIÇÃO – O PENSAMENTO DE GIUSEPPE VACCA

O que o pensamento de Vacca aporta às novas gerações, a nosso juízo, está na interpretação particular do papel intelectual e político desempenhado conjuntamente por Gramsci e Togliatti. Leitura iluminada não só pela reconstrução histórica da relação entre eles, mas também pela projeção desse pensamento para além dos limites da experiência histórica concreta que viveram, para torná-los autênticos clássicos do pensamento político contemporâneo[1].

Palmiro Togliatti discursa com imagem de Antonio Gramsci ao fundo

No entanto, diferentemente de Vacca, cuja biografia está em grande parte e inevitavelmente ligada à parábola do comunismo italiano do século XX, a nova geração nasceu após o esgotamento dessa história e está em condições de poder dar mais um passo à frente, considerando a obra de Gramsci e Togliatti como uma referência incontornável para a elaboração de um novo modo de pensar a política à altura dos problemas de nosso tempo. Desse ponto de vista, a teoria da hegemonia elaborada por Gramsci nos Cadernos assume o valor de uma teoria geral da política na era da mundialização. Qualificada como uma das possíveis declinações do historicismo filosófico europeu – o historicismo absoluto –, a teoria da hegemonia pressupõe a união dialética entre filosofia, história e política e nos permite analisar o presente partindo da premissa de que somente dentro da história mundial é possível apreender convencionalmente histórias nacionais individuais. Graças aos ensinamentos de Gramsci e Togliatti, a morfologia e a história das sociedades complexas podem ser compreendidas à luz do nexo que une as dimensões nacional e internacional, o crescente contraste entre o horizonte universal da economia e o “nacionalismo da política” e, por fim, a exigência de se articular novas formas supranacionais de soberania e regulação política das interdependências e dos conflitos.

Togliatti é, portanto, entregue às gerações mais jovens, em primeiro lugar, como um clássico do realismo político, como o teórico da análise diferenciada e expoente máximo da filosofia da práxis italiana que, a partir de Vincenzo Gioberti e o hegelismo revolucionário de Bertrando Spaventa, passando por Labriola, Croce e Gentile, encontra seu ponto de desenvolvimento máximo na obra de Gramsci e na construção do “partido novo”[2]. Do ponto de vista histórico e político, a figura de Togliatti é proposta como um dos principais pais da República e um “reformador italiano”, que está plenamente inserido na tradição do Risorgimento e se coloca na esteira dos grandes estadistas e reformadores da história da Itália: Cavour, Giolitti, o primeiro Mussolini, a dupla De Gasperi-Togliatti e Aldo Moro[3]. Em virtude das suas últimas reflexões (Discorso di Bergamo, Memoriale di Yalta), Togliatti permanece, por fim, com um ponto de referência essencial para aqueles que querem refletir sobre as mudanças nas formas da política, sobre o destino da humanidade na era da propagação das armas nucleares, no diálogo entre crentes e não-crentes, bem como na necessidade de articular formas diferenciadas de integração e cooperação em escala global.

Por outro lado, a relação das novas gerações com o que ficou da experiência comunista italiana e internacional não poderia deixar de ser necessariamente diferente. O final do século XX e do comunismo como movimento político organizado em escala internacional não nos permite ficar presos a um reducionismo nostálgico e politicamente estéril. Pelo contrário, o desafio a que somos chamados é o de vocalizar a aspiração à unificação progressiva da humanidade segundo formas políticas coerentes com a nova era histórica. Essa consciência exclui a possibilidade de que se possa ancorar, tout court, em paradigmas social-democratas tradicionais, economicistas ou em posições genericamente progressistas. A evolução conhecida pelo sistema internacional e pela economia mundial desde os anos setenta do século passado exige que novos caminhos sejam trilhados.

Manifestação política na Itália dos anos 1970 e a referência a Gramsci

Se, por um lado, a historiografia internacional mais avançada apresenta o comunismo como a primeira rede política da era global, por outro, sublinha-se que nunca conseguiu enfrentar com sucesso os desafios da hegemonia global. Os principais e não negligenciáveis ​​resultados alcançados pelo comunismo na história do século XX resumem-se, portanto, na construção de uma grande potência socialista sob a liderança de Stalin, na contribuição para a derrota militar do nazismo, assim como no processo de descolonização da era pós-imperial e na revolução chinesa[4]. Uma grande força, obviamente, incapaz, porém, de imprimir, de maneira duradoura, uma direção hegemônica aos grandes processos de unificação e modernização do mundo que marcaram a chamada “Grande Aceleração”, desde a criação de uma governança econômica e política global à emergência da revolução tecnológica, até a definição de novos modelos antropológicos e dos paradigmas intelectuais dominantes[5].

Nesse contexto, a história do Partido Comunista Italiano (PCI) surge como uma forma particular de reformar o comunismo, capaz de expressar criativamente o vínculo nacional-internacional e contribuir significativamente para a construção da democracia e da República Italiana. No entanto, o esgotamento desse impulso estava claro desde os anos setenta. Daí deriva que sua principal herança se concentra na transformação do seu particular internacionalismo por meio de uma adesão tardia ao europeísmo, ou seja, numa visão estratégica que identifica na construção da união política da Europa a forma mais avançada de regulação política supranacional, dentro de um processo mais geral de reorganização macrorregional da economia mundial[6].

A lição fundamental que Vacca nos dá, grammaticus da política, na esteira do último Togliatti, é um convite renovado para traduzir “os processos globais e os desafios da globalização em linguagem histórico-político”[7]. Esta coletanea[8] relança o desafio de ler a história em curso por meio das lentes da análise diferenciada, apreendendo os nexos de interdependência e as conexões entre a dimensão nacional e internacional, adotando assim um ponto de vista global e um respiro supranacional enriquecido por suas múltiplas articulações internas[9].

Giuseppe Vacca (1939)

O comunismo volta, assim, a ser uma ideia-limite, o horizonte mais autêntico do moderno, que não se traduz mais em um conteúdo político determinado ou em um específico projeto de “modernidade alternativa”, mas na ideia de “uma possível unidade política, material e espiritual, do gênero humano como resultado de seu desenvolvimento autônomo”[10]. Em outros termos, na afirmação de que a tarefa histórica das forças verdadeiramente progressistas na era da globalização é “contribuir para a reconstrução econômica do mundo de forma unitária”, desenvolvendo novas formas de regulação política e soberania supranacional, inspiradas no princípio da “unidade na diversidade” pois, nas palavras de Gramsci, o nacionalismo é uma excrescência histórica […] de pessoas que estão com a cabeça virada para trás como os amaldiçoados de Dante”[11].

Por fim, naquilo que Vacca nos ensina está a ideia de que o momento político mantém sua plena autonomia e preeminência, pois o nexo entre teoria e prática nunca é, segundo a concepção de Gramsci, mecânico, mas sim dialético e dinâmico e, como tal, deve ser redefinido sempre com base na análise das relações de força e da situação histórica concreta. Segue-se, portanto, que a construção do sujeito político sofre uma particular torção. Imunizada também graças a uma adesão convicta aos ensinamentos de Togliatti a respeito das simplificações e veleidades da nova esquerda e das formas utópicas de europeísmo, a nova geração sente a necessidade de identificar um vetor capaz de garantir a sobrevivência material da Itália, interrompendo seu dramático declínio e garantindo a participação do povo italiano na construção da cidadania democrática e supranacional europeia, no respeito às diferenças mútuas e na reafirmação da humanidade comum diante dos desafios globais hodiernos.

Manifestação em Roma a favor da União Européia

Isso tudo na convicção, novamente com Togliatti, de que “onde as massas vão, nós também devemos ir”, porque em última instância é aí que reside o poder criativo do Político [12]. É útil, portanto, notar que, por um lado, a ruptura consumada nas últimas décadas com a Itália do século XIX é definitiva e que, por outro, a deterioração da República atingiu um estágio tão avançado que exige agora uma política constituinte renovada.

Com o seu pensamento, Giuseppe Vacca nos permitiu assimilar uma das matrizes intelectuais mais férteis da história nacional e forneceu um método de análise do presente histórico. O compartilhamento dessas matrizes e instrumentos não necessariamente deve trazer as mesmas consequências no plano político contingente. Tudo isso, aliás, faz parte do processo natural no qual uma geração constrói seu trabalho com base naquela precedente, adaptando seus ensinamentos às necessidades do seu próprio tempo e às suas específicas exigências. O único modo de ser autenticamente fiel a uma tradição continua sendo o de inová-la criativamente.

(Esse texto é parte da “Introdução” (Doceo te grammaticam), escrita por Matteo Giordano, Lorenzo Mesini e Tommaso Sasso, para Italia in cammino – letture, ricordi, riflessioni, de Giuseppe Vacca (Ed. Castelvecchi, Roma, 2021). Os autores são também os organizadores do livro. O excerto aqui traduzido está nas páginas 08-13; tradução de Alberto Aggio)


[1] Cfr. P. Togliatti, La politica nel pensiero e nell’azione. Scritti e discorsi (1917-1964), di M. Ciliberto, G. Vacca (a cura di), Bompiani, Milano 2014; G. Vacca, Modernità Alternative. Il Novecento di Antonio Gramsci, Einaudi, Torino 2017.

[2] M. Mustè, Marxismo e filosofia della pràxis. Da Labriola a Gramsci, Viella, Napoli 2018.

[3] Cfr. G. Vacca, S. Ricci (a cura di), Architetti dello Stato Nuovo. Fascismo e moderni- tà, Istituto dell’Enciclopedia Italiana Treccani, Roma 2018.

[4] S. Pons, La rivoluzione globale. Storia del comunismo internazionale 1917-1991, Einaudi, Torino 2012.

[5] Per il concetto di “Grande accelerazione” cfr. J.R. McNeill, P. Engelke, Una storia globale dell’Antropocene dopo il 1945, Einaudi, Torino 2018.

[6] S. Pons, I comunisti italiani e gli altri. Visioni e legami internazionali nel mondo del Novecento, Einaudi, Torino 2021.

[7] M. Giordano, T. Sasso, L. Mesini, Intervista a Giuseppe Vacca, in «Pandora Rivista di Teoria e Politica», marzo 2016, pp. 1-13.

[8] Os autores se referem a Italia in cammino – letture, ricordi, riflessioni , de Giuseppe Vacca (Ed. Castelvecchi, Roma, 2021).  

[9]  Ibidem

[10]  Ibidem

[11] A. Gramsci, Quaderni del Carcere, a cura di V. Gerratana, Einaudi, Torino 1975, Q. 9 (XIV), § (127).

[12] P. Togliatti, Sul Fascismo, a cura di G. Vacca, Laterza, Bari 2004, p. 187.

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