Ouvi de um amigo valenciano, na Espanha dos noventa, a época do boomeconômico, uma observação impressionista a respeito dos impactos, contradições e ameaças que o alargamento sem precedentes do mercado de consumo provocavam no mercado laboral espanhol. Dizia ele: “neste país só duas coisas não fecham: a Guarda Civil (a polícia espanhola) e as lojas dos chineses”. Ambos eram fatos observáveis, sem muito esforço, mas o que ele queria realmente enfatizar era a operosidade dos chineses que resolveram atravessar oceanos e ganhar o mundo. Não que isso afetasse imediatamente a economia espanhola em seu conjunto, mas comparado aos espanhóis, com seu saudável hábito de dormir depois do almoço, os chineses se destacavam pela vida voltada ao trabalho full time.
Como instituição do Estado espanhol, a Guarda Civil permanece lá, atuante, como só se poderia esperar. E os chineses também, cada vez em maior número, não apenas na Espanha. Em vários lugares do mundo, até mesmo nas grandes cidades brasileiras isso é notado com facilidade, ainda que nossa economia não ande muito bem das pernas nos últimos anos.
Em recente visita a Nova Iorque, uma cidade efervescente que funciona dia e noite, imaginávamos que o mesmo ocorresse tanto com o aparato policial da cidade – que o cinema e as séries televisivas não cansam de nos mostrar – e, obviamente, com os chineses em seus estabelecimentos comerciais espalhados pela Big Apple. De qualquer maneira, não era o caso de checar se isso era verdadeiro ou não na terra do Tio Sam.

Entretanto, mesmo que de forma casual, poderíamos conferir a operosidade dos americanos, pelo menos os de Nova Iorque. Como se sabe, Nova Iorque não representa integralmente os EUA, pois é uma cidade-mundo. Mesmo assim, sem nenhuma intenção terapeutica, poderiamos tentar extrair, ainda que parcialmente, a temperatura e a pressão de como anda a economia americana.
E lá fomos nós numa visita interessada a um templo do consumo que se destaca por ter uma entrada estilizada na forma de um cubo de vidro, ao lado do Central Parque. Trata-se de um espaço subterrâneo cuja entrada, nos dias de chuva e frio, se transforma visualmente num cubo de gelo em razão da condensação. O lugar é inspirador do ponto de vista arquitetônico e estético. Étambém um espaço efervescente, com atendentes, demonstradores, vendedores e clientes espalhados em meio aos aparelhos eletrônicos, onde se destacam computadores, tablets, smartphones, aparelhos de som, etc. Numa visão panorâmica, o ambiente lembra uma guilda medieval, sem nenhuma divisória, no qual todos parecem interagir com todos, de dentro e de fora. Ao redor do cubo de vidro a vida fervilha com multidões circulando pelas ruas e avenidas, num movimento incessante que lembra a Rua 25 de Março em São Paulo às vésperas do Natal.
A imagem de Nova Iorque continua a ser a de um futurismo hipermoderno. Nova Iorque não é uma festa: é um mundo movido pelo trabalho incessante e pela liberdade, pela vitalidade e pelo pluralismo de expressões, que vão do acesso ampliado ao mercado, numa reconhecida inclusão social feita de maneira radical há décadas, até manifestações em defesa dos direitos civis, sabidamente ainda problemáticos nestas latitudes. E esse turbilhão não se vê apenas em Manhattan, podendo ser observado também no Barclays, ginásio de esportes que é a casa dos Nets, no distante e popular bairro do Brooklin.

Mas, voltemos à loja de eletrônicos. Na rápida conversa com o vendedor me veio inadvertidamente a lembrança do meu amigo valenciano. Estávamos buscando um modelo de smartphone novo, que os ávidos consumidores norte-americanos e estrangeiros não deixam estocar nem mesmo até a metade do dia. O resultado é que depois de uma hora da abertura da loja já não existe nenhum exemplar do tal modelo para oferecer aos clientes. Qual a solução, então? Chegar o mais cedo possível, imaginamos. Foi então que perguntamos ao vendedor: a que horas abre a loja? Antes de terminarmos a pergunta, o vendedor, antecipando-se, nos disse de maneira calma e pausada: “meus caros, essa loja não fecha nunca”. E, podem confiar: ele não era oriental e nem tinha ascendência alguma que lembrasse o levante. Era um americano típico, comum e corrente, como gostam de dizer os espanhóis, para mencioná-los mais uma vez.
Muito se falou da decadência americana em razão da grande crise que teve início no final da primeira década do século XXI. Muitos retomaram o mantra da “crise terminal do capitalismo”, como se fez repetidas vezes no século passado. Contudo, parece que o capitalismo americano tomou um novo fôlego e vem sugerindo uma recuperação da sua economia que não deve ser desconsiderada. Talvez possa se falar, com alguma convicção, que a hegemonia norte-americana sobre o mundo venha declinando nos últimos anos e que o futuro aponta nessa direção. Mas não parece que haverá algo similar ao colapso de um império, com suas consequências correspondentes. Os EUA parecem ser cada vez mais cosmopolitas e menos “hegemonistas” em termos culturais, sociais e políticos. Pelo menos é o que nos apresenta Nova Iorque.
É possível, como dissemos, contra-argumentar que Nova Iorque não é e não representa toda a sociedade norte-americana e, por isso é prudente, ao finalizar, advertir que, desprovida de critério científico, esta é apenas uma impressão subjetiva, uma anotação, como faziam aqueles antigos viajantes do mundo moderno. Deles, todavia, a literatura especializada vem tecendo importantes comentários sobre a sua capacidade em nos revelar a experiência humana.
Ps. As fotos que ilustram essa crônica são do cubo de vidro da Apple da Quinta Avenida. O cubo de vidro que ficava bem próximo ao Central Park foi desativado.