A institucionalização da democracia na Espanha, com os Pactos de Moncloa, não só importou a criação de novos direitos e de novos procedimentos destinados a lhes conceder eficácia, como também ensejou um ambiente propício para que antigas instituições renovem sua forma de atuar e se atualizem na complexa cena contemporânea. Esta é bem a discussão que envolve a legislação e os acordos do mundo do trabalho, do qual é testemunha a legitimação do chamado salário-mínimo interprofissional (SMI), com o concurso das organizações sindicais e as associações empresariais, inovando o sistema dos deveres e direitos do trabalho. Importa reter que isso não tem nada a ver com as medidas urgentes com vistas à reforma trabalhista e esse equívoco e confusão acabou por colocar o governo diante de uma saia justa.

Mas como é uma prerrogativa legal, concertada e ofertada a partir de iniciativa governamental (isto é, passível de se fazer benchmarking governamental), o governo espanhol apresentou a proposta para fazer o SMI chegar aos 1000 euros mensais. Além disso, tal mudança teria vigência retroativa a 1 de janeiro de 2022. É um aumento de 35 euros em relação ao vencimento mínimo atual, de 965 euros mensais.
Depois de se reunir com as organizações sindicais e as associações empresariais, o Governo confirmou que pretende chegar o SMI para aquele patamar de 1000 euros com 14 contraprestações. Apesar das organizações sindicais terem informado que o Ministério colocou para negociação o valor de 996 euros, um dos três cenários propostos pela “Comissão Assessora de Análise” do SMI que aconselhou o governo, mas que esse número não era a decisão final. Nenhuma das três recomendações da Comissão coincide com os exatos 1000 euros que são a opção do Ministério. As sugestões eram, respectivamente, 989 euros, 996 euros ou 1005 euros, mas a proposta do governo buscou um valor intermediário entre os dois mais altos. Ainda assim este será um incremento inferior à inflação esperada para este ano.
Naqueles três cenários, a atualização seria de 22 euros, de 31 euros ou de 40 euros. A opção do governo pela melhoria em 35 euros coloca o vencimento num número redondo. A proposta está fechada e será confirmada oficialmente num diploma do governo. As associações empresariais não estão de acordo, na medida em que as afeta frente à gravidade da crise econômico-financeira, além terem de operar diante de razões estranhas à lógica do mercado.
O objetivo do Governo passa por aumentar o salário de forma progressiva até a retribuição atingir 60% do salário médio conforme indicou a Comissão Assessora de Análise do SMI para o atendimento a Carta Social Europeia, até o final da legislatura, no próximo ano. Para isso, o salário terá que alcançar os 1063 euros em 2023.

Está claro que a trajetória de melhoria do SMI – de 31% desde 2019, em 229 euros – parece estar oferecendo um impacto na redução da pobreza. Ocorre que as cidadãs e os cidadãos estão sujeitos ao trabalho precário e à incerteza de relações de trabalho. Não está claro que a reforma da legislação trabalhista ajudará a superar esse problema.
No Brasil, o salário-mínimo também tem aumentado nos últimos anos e o governo voltou a atualizar, no final de 2021, o salário-mínimo por hora, para esse ano, para R$5,51 (cinco reais e cinquenta e um centavos) que não perfaz nem 1 euro. Em Portugal, após vencer as últimas eleições, o Partido Socialista (PS) comprometeu-se em negociar um acordo na concertação social (com um horizonte até 2026) para seguir melhorando o salário-mínimo anualmente, em função da dinâmica do emprego e do crescimento econômico, com o objetivo de atingir pelo menos os 900 euros no ano apontado.
Claro está que a Península Ibérica segue sua jornada como jangada de pedra de José Saramago só que dessa vez acompanhando a complexa navegação oceânica europeia por estarmos muito próximos de um cenário dificílimo, pois advindo de lide sistêmica que extrapola aquele continente, bem como mesmo em meio à pandemia ainda em curso – e quiçá, por isso – quem sabe se possam encontrar os meios para que o justo prevaleça para todas e todos.
E aqui? Alguns fingem desconhecer o mundo e as suas contingências, e se fala para o mundo da lua. Mantem-se a retórica verborrágica fazendo de conta que poderão dirigir a vida pela força de canetadas revogatórias. Ao virar as costas às nossas instituições, desperdiça-se o chão que tem sustentado a nossa caminhada constitucional e que tem nos orientado no sentido de criarmos uma sociedade mais justa.