Em dias chuvosos e frios, tão comuns em São Paulo, as lembranças passam por nossa cabeça como um raio. Algumas são capturadas, outras se perdem e, quem sabe, espreitam seu retorno sem que a gente perceba.

Cheguei à cidade em janeiro de 1970, na traseira de um caminhão de mudança, perigosamente encolhido entre um sofá e o gradil da carroceria que garantia uma sustentação mínima para que não fossemos jogados para fora. A viagem havia durado a noite toda. Quando saímos fazia calor, mas foi esfriando na madrugada, nos obrigando a puxar a lona que cobria os móveis para nos proteger. Quando entramos na marginal do Tietê tudo era cinza e caia uma garoa fria que, para um garoto vindo de uma cidade na qual o asfalto amolecia nos meses de verão, era algo despropositado.
A sensação após nos instalarmos numa casa térrea no bairro da Penha, Zona Leste, era de que não havíamos deixado a estrada. A casa ficava numa avenida movimentadíssima que ligava a Penha a São Miguel Paulista. A circulação de ônibus era intensa. Na cidade onde morávamos, existiam carros, mas lugar de ônibus era na estrada e não nas ruas, onde andávamos a pé e de bicicleta todo o tempo, sem muita preocupação.
São Paulo era assustadora e perigosa. Representava uma mudança profunda, da adolescência para a juventude, da pequena cidade do interior para a grande metrópole. Aparentemente não havia volta atrás, mesmo que se tentasse. O desafio era ir em frente e, com cautela, descobrir o que a grande cidade podia oferecer.
A nova casa era de aluguel e ficava nos fundos de uma metalúrgica. O barulho não era muito grande, mas a presença dos operários no corredor de entrada da casa era inusitada, especialmente na hora de descanso depois do almoço. Sim, não se podia entrar na casa sem passar pela metalúrgica. A casa era uma construção simples, feita para abrigar o proprietário e sua família ao fundo e uma edificação em frente para o seu negócio ou para alugar. Ambas construções deslizavam sobre uma colina relativamente íngreme, o que fazia com que a casa abrigasse dois porões espaçosos, embora rústicos. Um deles nós usávamos para ler e estudar.

Com o passar do tempo e o bom desempenho no futebol de salão que praticávamos na escola, comecei a jogar no Clube Esportivo da Penha que disputava o campeonato de futsal pela Federação Paulista. Naqueles anos aquele foi o meu clube de coração. Tinha orgulho em vestir aquela camisa vermelha com uma faixa negra na altura do peito e o escudo do Clube. Em plena juventude, jogava quase todos os dias na escola, participando de jogos de um time de bairro e, principalmente, jogando como “federado” no Esportivo da Penha, além de compor a seleção do Instituto Estadual de Educação Nossa Senhora da Penha; algumas vezes jogava na várzea dos campos de futebol entre a Penha e Guarulhos que hoje não existem mais. Embora pertencente a uma família de origem italiana, nunca fui palmeirense em razão da presença marcante do Corinthians na vida dos jovens do Zona Leste. Como dizem, não há coisa mais forte do que o “espírito de manada”.
Além do Estadual da Penha ser ainda uma escola de bom nível no início da década de 1970 – haverá, como sabemos, uma grande deterioração do ensino médio nos anos seguintes –, ser de uma família que estimulava a leitura foi um fator decisivo. Mas há algo inusitado que deve ser mencionado: há poucos passos de casa, em plena avenida, numa garagem de apenas uma porta, havia um sebo, isto é, um comercio de livros usados. Meu irmão mais velho chegou a comprar um livro de Hegel e ali adquirimos romances de leitura obrigatória na escola, além de alguns remanescentes da antiga editoria Vitória, vinculada ao PCB – algo que evidentemente não sabíamos e que só viemos a nos inteirar muitos anos depois.

Futebol e leitura se mesclam nessa memória de formação. Livros indicados pela excelente professora de literatura que tínhamos e outros que obtínhamos no sebo. A periferia da grande metrópole tinha, de alguma forma, espaços de cultura que podiam ser vivenciados e por onde circulávamos com desenvoltura. Além disso, na Penha havia alguns cinemas bastante frequentados pelos moradores. Neles, não era incomum, cabularmos aulas quando éramos instigados por nossas colegas interessadas em ver filmes proibidos para nossas idades. Não eram filmes pornográficos, mas filmes “eróticos” que elas não poderiam revelar que haviam visto para seus namorados e menos ainda para suas famílias.
Contrastada com as luzes do cair da tarde, a imagem das estreitas ruas de paralelepípedos umedecidos pela garoa paulistana parece estar fixada na memória sem que se peça que retorne ao presente. Imagens que registram o transitar da escola para a casa e vice-versa, e dai para as quadras de esporte. Da casa para a biblioteca pública que – pasmem, em plena década de 1970 – a administração municipal construiu próximo ao antigo largo da velha igreja da Penha para ai ler sem parar e de tudo, durante os dias frios das férias de meio de ano.