DOIS MUNDOS FRATURAM GRAMSCI

Antonio Gramsci (1891-1937) é um autor de leitura complexa, sobretudo por conta das condições em que escreveu a sua obra maior, preso em cárcere fascista. Sua produção teórica é conhecida em artigos e publicações jornalísticas e de opinião, mas também, e principalmente, nos apontamentos que fez enquanto era prisioneiro de Benito Mussolini, quando produziu escritos fragmentários registrados em cadernos escolares, que tratavam de temas que iam da literatura até a política.

Capas dos cadernos escolares usados por Gramsci na prisão

O comunista sardo, então, recebe constantes e plurais interpretações de suas obras, que a cada nova publicação tem um aspecto de renovação nos estudos gramscianos. Claro, nem toda a bibliografia apresentada em torno do nosso autor é de qualidade, visto que seus inimigos teóricos buscam na maioria das vezes apresentar uma caricatura do italiano. Percebe-se isso em setores da extrema-direita e até a extrema esquerda.

O livro Gramsci entre dois mundos: política e tradução do cientista político Alvaro Bianchi é uma obra que no campo das pesquisas gramscianas traz aspectos positivos, revela questões metodológicas e também de compreensão teórica quanto ao pensamento político de Gramsci. Mas falha, até de modo grosseiro, ao nos oferecer um rosto gramsciano estranho aos que algum tempo encaram o pensador italiano como um teórico das sociedades modernas.

O lugar de Gramsci

Seja na academia ou no ambiente político (e até partidário), Gramsci é um nome que provoca calorosas discussões. Em parte, por conta da citada natureza de sua obra ou porque, sendo ele um teórico que interferiu diretamente na dinâmica da vida política, acaba por produzir disputas quanto ao que seria o “verdadeiro” Gramsci.

Alvaro Bianchi inicia sua obra abordando questões relacionadas à nova edição italiana da obra de Gramsci. O autor vê riscos a serem avaliados, a partir do ambiente natural dos escritos e sua relação com o mundo. Há uma comparação sobre o momento no qual, segundo Bianchi, houve desinteresse por parte da Itália em sua obra, enquanto ele teria sido acolhido em outros países. Na nova edição apareceriam dificuldades de acesso às fontes, a comprometer estudos e pesquisas.

Capa da edição dos cadernos do Cárcere (1975)

Contrapondo-se, de certa forma, ao esforço da nova edição, Bianchi peca quando cria uma espécie de Gramsci periférico. Ao falar de um bisonho “mezzogiorno tropical” ele busca na geografia política italiana uma metáfora para um Gramsci do mundo atrasado, das partes onde a formatação social se deu através das mudanças por cima. Com isso se altera ou mesmo se perde a dimensão de Gramsci como um teórico do Ocidente, a saber, das sociedades complexas e avançadas.

Parece que Bianchi opta por trazer Gramsci para o Oriente, isto é, para a periferia, no qual prevaleceria o teórico da “guerra de movimento”, ou seja, o mundo das insurreições, tal como vemos no ambiente da revolução russa de 1917. No livro se sugere, portanto, uma percepção de Gramsci diferente do apresentado por grande parte dos estudiosos, ou seja, de um intelectual comunista que trabalhou em um momento de ruptura histórica e que foi capaz de renovar a teoria marxista como uma proposta para um novo tempo. O Gramsci de Bianchi é uma construção particular e bastante distorcida, que parece obedecer a uma tentativa de conversão ideológica e política das percepções ou mesmo intenções do nosso autor. Assim, não é o Gramsci real, que interessa para as forças democraticamente modernas, é o Gramsci revolucionarista, que só pode prevalecer no mundo em atraso.

Método filológico, conceitos e trajetória acadêmica

Bianchi dedicou os primeiros capítulos do livro na apresentação dos principais verbetes gramscianos, assim como em um importante resumo de alguns dos passos de Gramsci dentro da Universidade. Há detalhes até mesmo quanto ao currículo que Gramsci estudou bem como os professores com quem se relacionou aparecem como parte fundamental da sua biografia, adentrando no percurso da formação intelectual do teórico sardo. Já a breve apresentação dos conceitos gramscianos mais importantes nos colocam diretamente em contato com a cabeça do autor de quem se ocupa o livro. Em se tratando de um pensador tão particular como Gramsci, essa introdução conceitual é fundamental.

Bianchi também dedica algumas páginas do livro à questão do método filológico na interpretação dos escritos gramscianos (filologia é o estudo dos textos e seus aspectos históricos e literários). Questões metodológicas são importantes e no caso de Gramsci é mais que fundamental. A questão é que o leitor mais interessado no aspecto da teoria política de Gramsci, e afoito por uma caracterização história mais direta e objetiva, pode se sentir desanimado em seguir a leitura. No entanto, o trabalho de Bianchi tem a virtude de fatiar aspectos integrados, mas sem comprometer leituras desordenadas dos capítulos. Os que pretendem o Gramsci da política e da teoria cultural propriamente dita podem pular o capitulo.

Intelectuais e revolução russa

Um elemento extremamente importante na obra gramsciana é o papel dos intelectuais. Bianchi destaca esse aspecto da construção dos estudos culturais de Gramsci logo nos primeiros momentos do cárcere. Contando com a ajuda de Piero Sraffa, responsável pela compra dos livros usados por Gramsci em parte dos seus estudos, e também da sua cunhada Tatiana Schucht, o trabalho de pesquisa do agora prisioneiro do fascismo italiano se desenvolveu a partir de leituras envolvendo a cultura italiana, sobretudo a partir dos escritos do filósofo Benedetto Croce.

Gramsci em uma alegoria contemporânea

Neste capítulo, novos aspectos biográficos aparecem como pano de fundo da situação física em que se encontrava Gramsci, diante da insalubridade do cárcere. Gramsci viria a sofrer graves problemas de saúde e perderia sua vida em consequência das condições sanitárias que lhe atingiram em cheio enquanto esteve preso.

O estudo em torno de Croce é conhecido e tem papel de destaque nos Cadernos do cárcere, mostrando que o sistemático pensamento gramsciano – Bianchi insistirá neste livro que a obra carcerária de Gramsci carece de sistematização, vindo a ter um caráter predominantemente fragmentário – cobra papel de destaque do aspecto cultural, intelectual, isto é, do espírito público, mesmo quando se tratando da renovação na estratégia política da revolução comunista.

A revolução russa e seu caráter socialista, aliás, recebem tratamento significativo no livro. Aqui, iniciava-se a formulação de conceitos importantes como Oriente e Ocidente, que ocupam função imprescindível na nova formulação revolucionária do marxismo de Gramsci. A tomada abrupta de poder pela via do assalto ao Estado sai de cena para que a luta político-cultural pela hegemonia ganhe papel destacado. Mais uma vez, aparece o teórico revolucionário extremamente ligado à busca da construção de uma nova cultura, de caráter socialista. Aqui deve se compreender que o autor sardo irá desenvolver, no seu percurso teórico, conceitos para uma nova compreensão das formações econômico-sociais do capitalismo, que veremos a seguir, serem pontos da fragilidade argumentativa de Bianchi.

Gramsci e o Brasil

Gramsci numa iconografia pública na Itália

O capítulo que trata do Brasil traz, com pouquíssimas novidades, o debate em torno da contribuição de categorias conceituais gramscianas na interpretação da realidade brasileira. Gramsci olhou pouco para nosso país, assim como para a América Latina, resumidos como sendo a parte de um mundo em luta contra seu atraso histórico. Temos aqui o “Gramsci europeu”, que mesmo com sua mentalidade cosmopolita não perdeu certa característica de homem do seu tempo e espaço. Além disso, devemos relembrar as condições de escrita do autor dos Cadernos do cárcere, que mesmo assim garantiu um caráter universal a seu pensamento.

Como era de se esperar, neste capitulo, Bianchi centra-se no conceito de revolução passiva, visto que o Brasil é o país por excelência em transformações históricas feitas pelo alto. A discussão apresentada aqui em torno de dois grandes nomes do pensamento social brasileiro como Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna é a marca de um debate que ofereceu interpretações do Brasil alternativas às prevalecentes em nosso país, formulações que foram capazes de influenciar decisões (hoje tidas como equivocadas) de um ator político importante como foi o PCB. No fim, a evolução da influência gramsciana no Brasil, narrada por Bianchi, oferta chaves explicativas da formação brasileira, destacando momentos históricos, como a era Vargas e a chegada do PT à presidência.

Gramsci e a democracia

O livro de Alvaro Bianchi traz algumas novidades no campo dos estudos gramscianos, com linguagem técnica mais próxima de quem já está inserido no terreno das pesquisas em torno da obra de Gramsci, ainda que possa contribuir com alguma aproximação do público leigo a respeito de pontos consagrados historicamente na vida e obra do fundador do PCI.

A contribuição de Bianchi pode ser elogiada por ser mais uma contribuição bibliográfica sobre um autor tão importante, mas é preciso apontar limitações e equívocos. A originalidade tem sua função, mas passa longe de ser uma revolução nos estudos gramscianos. Há obras significativas bem mais completas, como Vida e pensamento de Antonio Gramsci, de Giuseppe Vacca, e O jovem Gramsci, de Leonardo Rapone. Além disso, a reorientação do Gramsci teórico das sociedades ocidentais para uma concepção em direção ao que está ultrapassado, operada pelo autor, é pura distorção. O livro de Bianchi tem méritos e demonstra virtudes no plano da divulgação, mas se compromete em aspectos da política e mesmo no julgamento dos benefícios de novos esforços metodológicos da obra gramsciana.

Além do mais, nos seus posicionamentos introdutórios, o livro é bastante provocativo enquanto sua percepção a respeito do papel da democracia. Mas falta uma afirmação decidida de que a democracia é um elemento de generalização da esfera pública rumo a uma ampla articulação universalizante, que poderia substituir a revolução passiva, vista não como um programa político, mas um fenômeno que resulta das pressões populares e fruto dos enfrentamentos entre os de cima e os de baixo. A democratização como processo de triunfo civilizatório precisa ser compreendida e defendida como esse instrumento de vitória do escopo cosmopolita e universal. Bianchi não faz isso.

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