Era o inverno europeu de 1988. Nunca havia sentido tanto frio na vida. Mas tudo valia a pena. Era a primeira vez na Europa e, como se costuma dizer, “a primeira vez a gente nunca esquece”. Era uma viagem de turismo, de cultura, de aprendizado. Mas também com um foco específico: a busca de materiais para o meu mestrado sobre o Chile de Allende. Sabia que na Europa poderia encontrar livros e revistas aos quais muito dificilmente teria acesso no Brasil. Em quase todas as cidades fui um rato de livrarias e sebos.

Por recomendação de amigos, viajei no inverno, quando é mais barato, tem menos gente “turistando” e fica mais fácil ir a museus, encontrar hospedagem e circular pelas cidades. Cheguei em Londres onde já tinha lugar para ficar: uma casa invadida por brasileiros que lá estavam. Não era um crime, mas era algo fora da lei, uma contravenção, diríamos aqui. Em Londres, nessa época, havia muitas casas desocupadas, em boas condições, e a polícia só apareceria para desalojar os invasores caso houvesse alguma denúncia. E isso poderia durar um mês ou dois. Passei uma semana nessa espécie de “ilegalidade” apenas para conhecer minimamente aquela grande metrópole.
Viajar pela Europa naquele tempo era muito caro. Para quem não tinha recursos era preciso aproveitar qualquer oferta minimamente razoável. O objetivo era viajar por várias cidades importantes, sem gastar muito. Depois da casa ocupada, atravessando o Canal da Mancha, viriam os albergues, nos quais se pagava um valor simbólico ou mesmo nenhum. Hotéis só os muito baratos, com banheiro fora do quarto e sem calefação.
A maior economia se fazia planejando o deslocamento de uma cidade para outra. Naquela época, a 1ª classe dos trens operava com cabines de seis poltronas reclináveis, uma em frente da outra. A ideia era viajar à noite, de preferência num trajeto que durasse a noite toda, ocupar as seis poltronas, fechar a porta da cabine e dormir. Usamos várias vezes esse expediente agrupando, a cada etapa, uma pequena “gangue” de brasileiros que viajavam da mesma forma.
Depois de Londres, Amsterdam e Paris, chegamos a Firenze, após viajar a noite toda. Era uma manhã fria e com alguma névoa. Caminhamos da estação Santa Maria Novella até as colinas da cidade, depois do Arno, rumo a um albergue mantido pelas freiras. Ainda pela manhã descemos ao centro. A diferença no comportamento das pessoas chamou imediatamente a atenção. Era divertido, entre outras coisas, ver um italiano conversando com o que estava na outra calçada, aos berros, por sobre os transeuntes, combinando alguma coisa para mais tarde. Logo me dei conta de que acabávamos de encontrar uma cultura urbana um pouco mais parecida com a nossa. Não era Londres, onde as pessoas, apressadas, desviavam o olhar; ou Paris, onde os comerciantes se aborreciam ao ouvir um francês não muito bem pronunciado.

Ao chegarmos a Roma, o panorama não se alterou. As ruas e as galerias eram ocupadas pelas pessoas numa agitação frenética típica das grandes metrópoles. O encantamento com a Itália foi se cristalizando sem nenhum esforço. E não poderia deixar de envolver a política, a boa política democrática na qual a rua e o sentido das palavras e dos símbolos identificavam as pessoas e geravam um sentido, uma perspectiva de compartilhamento sobre os desafios do tempo.
Estávamos na Via del Corso quando a poucas quadras divisamos uma manifestação política descendo a avenida em direção à Piazza del Popolo. Era uma manifestação em favor da luta dos palestinos. Percebi a ausência das bandeiras do PCI, o grande partido comunista dos italianos. Fiquei observando e vi um jovem na lateral da manifestação dando algumas orientações aos manifestantes. Fui falar com ele.
Seu nome era Stefano, um jovem estudante de História da Sapienza, a universidade mais prestigiosa de Roma. Perguntei sobre o PCI. Ele me respondeu que o partido ainda estava indeciso quanto ao apoio explícito àquela que ficaria conhecida como primeira “Intifada” dos palestinos, no final de 1987. Sem a presença do PCI, percebia-se que a mobilização política, na esquerda italiana, não dependia do partido, embora não fosse contra ele. Ali estava a juventude de esquerda, uma juventude ativa e participante, expressando uma noção aguda dos acontecimentos mundiais.

Depois da manifestação fomos, com Stefano, tomar alguma coisa num bar ali mesmo no centro. Contou-nos que havia sido namorado da sobrinha de Enrico Berlinguer, o grande líder do PCI, e esteve muito próximo à família durante sua agonia depois do derrame que o matou em 1984. Comentei que, na minha memória, Berlinguer era um homem magro e tinha uma aparência frágil. Stefano me contestou: “Si, è vero, pero nel dibattito era un leone”.
Stefano nos recomendou que déssemos uma passada por Bogliasco, um picolo paese conurbado a Gênova, para conhecermos sua mãe, que era membro do PCI e participava da administração do Comune. Anna Maria era professora de educação física e vivia com Gianni, um operador de guindastes no porto. Foi o momento de maior conforto em toda viagem.
Quando fomos dormir, ao fechar o quarto que ainda era usado por Stefano quando visitava a mãe, na parte de trás da porta estava escrito, em letras vermelhas escorridas, uma única palavra: CHILE. Emergia então uma conexão até certo ponto impensável daquele encontro fortuito em Roma.
No final do mesmo ano, depois do Plebiscito de 1988, viajei a Santiago por uma semana para completar a pesquisa sobre o Chile de Allende. Alguns autores chilenos, que incorporei à pesquisa, os li, pela primeira vez, em italiano. Ao voltar ao Brasil, a tese de mestrado ficou pronta em poucos meses.
Carmen Lícia Palazzo | 3 de novembro de 2021
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Beleza de crônica.! Experiências dA nossa geração, é muito importante que fiquem documentadas por quem escreve tão bem como você.
Alberto Aggio | Autor | 4 de novembro de 2021
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Grato pela leitura e pelo comentário. Fico feliz de você ter gostado da crônica. Grande abraço
Helga Hoffmann. | 3 de novembro de 2021
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Linda crônica de Viagem. Mas Não consigo Me Identificar Co.m “Ilegalidade. Reconheço que Sou Privilegiada,,Nunca Precisei Pernoitar em Casa Invadida. Nem Sabia Que Isso Existia Em LONDRES.Kkk Quanto a Itália, o País Mais Lindo Do Mundo. Mas a Tua Identificação Não tem a Ver com o Fato De Que Nove é Aggio?
Alberto Aggio | Autor | 4 de novembro de 2021
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Obrigado Helga. Só não entendi o finalzinho do seu comentário. Grande abraço.