Era algum ano da década de 1990. O avião acabava de pousar no aeroporto madrilenho de Barajas vindo do Brasil. A viagem havia sido tranquila para o início do ano, quando a Europa já vivia cortada pelo frio do inverno. Passada a alfândega, haveria alguma espera até o embarque no voo da tarde em direção a Valência.

Deambulando pelo aeroporto em busca de algo para comer topei com um self-service que me pareceu satisfatório, além de estar próximo do portão de embarque para Valência. Havia alguma fila e isso indicava que poderia ter algo razoável para comer além de sanduiches prontos. A fila caminhava com alguma lentidão. Aproximando-me do balcão, reparei que paella era uma das ofertas aos famintos viajantes.
Considerei a possibilidade de fazer um belo prato daquela iguaria que pouco se encontrava no Brasil. Logo atrás de mim vinha um senhor de aspecto simpático com quem comecei a conversar banalidades. Depois de dizer que esperava o voo para Valência, para onde ele também iria, ousei afirmar: “Uma paella não seria nada mal”, apontando para a paellera. Ele me contestou imediatamente: “Não faça isso. Essa não é uma paella como deve ser. Se vais a Valencia, espere um pouco para comer uma paella verdadeira”. Ele estava me dizendo simplesmente que seria em Valência que eu poderia apreciar uma paella nas suas características originais, a famosa paella valenciana. A ênfase me chamou atenção. E foi nessa viagem que percebi melhor como a paella ainda permanece como referência nos almoços dos dias “normales y corrientes”, como dizem os valencianos, mas especialmente nos finais de semana, reunindo a família e amigos.

Tenho diversas lembranças da minha experiência com a paella a partir dessa viagem. Uma delas quando, almoçando com minha esposa num restaurante popular no bairro da Malvarosa, fui reclamar por conta de uma pequena porção de arroz queimado que veio no meu prato. O garçom estranhou e me disse que aquilo era comum e se chamava “socarrat”, um sinal de que a paella estava bem cozida e até queimara no fundo da paellera.
Outra passagem marca os hábitos daquele tempo. Invariavelmente almoçávamos no restaurante universitário nos dias de semana. A cena era incrível para os dias de hoje. Comíamos envoltos por uma névoa proveniente da fumaça dos cigarros. Parecia que o gosto da paella produzia uma combinação inusitadamente prazerosa com os cigarros acesos, um atrás do outro, mesmo durante a refeição. Era um tempo em que quase todos carregávamos o hábito de fumar de maneira tão inconsciente quanto inercial, que mais tarde cobraria seu preço em nossas vidas.
Claro que as paellas servidas no restaurante universitário não tinham a mesma qualidade daquelas que Joan del Alcazar, professor do Depto de História, preparava em sua casa. O cuidado na obtenção dos componentes era essencial, mas isso não significava luxo ou sofisticação. Era algo habitual, quase automático, como parte de uma cultura alimentar presente no dia a dia da familia. O arroz, as carnes, as verduras e os condimentos estavam à mão, em qualquer supermercado, pequeno ou grande. Por fim, o time de finalização da paella, do fogão para a mesa “de imediato”, era preceito que fazia parte do prato – não poderia tardar ou deixar de ser cumprido.

É marcante também a linguagem para caracterizar ou definir a paella. Chama a atenção a conotação dada à “verdadeira paella valenciana” quando se quer enfatizar o modo correto de fazê-la. A expressão usada é “paella canônica”. E isso tem explicação. A presença da Igreja católica na cultura espanhola deixou marcas profundas, dentre elas a dolorosa memória da Inquisição. Mas também a rigidez e a normatização. E assim, mesmo os ateus, não deixam de usar expressões com evocações do catolicismo, como a do caráter canônico de uma paella, “feita como se deve”, como se as outras estivessem revestidas de “heresias”. Certo ou errado, a “verdadeira paella valenciana” é efetivamente diferenciada e deve ser assim considerada.
Mas essa história tem um outro lado. Os críticos da herança católica e do regime franquista (1939-1976), que teve no catolicismo conservador um dos seus sustentáculos, também não deixam por menos. Com meu amigo Joan aprendi tanto a colocar o arroz em cruz na confecção da paella como um dito agressivamente anticatólico que os milicianos que defendiam a República na Guerra Civil diziam com raiva e ironia: “Em cague en Déu, en la creu i en el fuster que la feu”[1], dito que minha herética sobrinha repete quando me vê colocar o arroz, em cruz, na paellera borbulhante.

A experiência mais marcante, contudo, foi num almoço de domingo na casa da Tia Maruja, parente de um casal de amigos brasileiros de origem valenciana. Ela vivia com o marido numa chácara nos arredores de Valência. A casa era sólida e antiga, com todas as dependências, incluindo uma cozinha. Mesmo assim, a paella foi feita num local coberto a alguns metros da casa. Dali exalava o cheiro da queima dos galhos das laranjeiras recolhidos de um pomar ao lado da casa, ainda regado por acéquias que alternam a distribuição da água conforme os dias da semana, uma tradição que vinha desde a ocupação árabe da Península Ibérica.
A paella feita à lenha compunha uma cena bastante expressiva, revivendo uma cultura camponesa entranhada na memória social. Era a reprodução da antiga forma de elaboração da paella, um prato que desde sua origem é integralmente composto do que se pudesse obter do campo, desde os ingredientes até o seu preparo, com fogo sendo alimentado pela “lenha de laranjeira”, outra especialidade da região de Valência até os dias de hoje.
À base de “copitas de vino tinto”, familiares e amigos aguardavam a entrada triunfal da paella. Dois homens a transportaram para dentro da casa. Tia Maruja e o marido serviram cada uma das 20 pessoas que ali estavam e só depois se sentaram para comer diretamente na paellera, como era o costume tradicional. O olor de azeite, arroz, açafrão, alecrim e “pimentos”, inundava o ambiente. E não poderia ser diferente, com todos extasiados diante de uma comida que combina elementos da terra, água e fogo.
[1] Numa tradução livre: “Cago em Deus, na cruz e no carpinteiro que a fez”.
Virginia Maria De ALMEIDA | 26 de setembro de 2020
|
Preciso experimentar nunca comi qnd vejo me dá água na boca
Alberto Aggio | Autor | 27 de setembro de 2020
|
Se quiser provar, estamos a disposição. Se vc mora em São Paulo pode estar no nosso raio de entrega. Consulte no Instagran @paelladelturia ou pelo Whatsapp 16-991214468 (mensagem gratuita). Abraço.
flavia | 8 de outubro de 2020
|
A Paella é realmente sensaCIONAL!!!